quinta-feira, 17 de abril de 2008

Resenha sobre o texto “O Narrador” de W. Benjamin_ por Luciana


Resenha sobre o texto “O Narrador” de W. Benjamin_ por Luciana


BENJAMIN, Walter. “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. In: Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994_
resenha de Luciana Rodrigues



Em um ensaio do ano de 1936 intitulado “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, Walter Benjamin fazia uma análise de que a arte de narrar estava com seus dias contados, que a figura do narrador havia se tornando cada vez mais distante das nossas vidas e que, com o fim da narrativa, estaríamos perdemos nossa vocação de trocar experiências. Em tempos de capitalismo informacional esse diagnóstico é mais do que certeiro, não há lembranças e experiências compartilháveis, não há mais materialidade espacial nem temporal, não há tempo para assimilação, a informação, no lugar da narrativa, necessita ser sempre nova e plausível, rapidamente verificada (o que não necessariamente a torna verdadeira).

Benjamin dá pistas onde podemos observar dessa morte das experiências compartilhadas: nos jornais, nota, tanto as experiências do mundo exterior quanto do mundo ético empobreceram. Desde a guerra (trata-se da Primeira Grande Guerra, esclareça-se), aumentando com o tempo, não há narrativas que se aproximem das transmitidas de “boca em boca”. O autor vê uma lógica nisso: empobreceram-se as experiências, elas foram desmoralizadas pelos fronts, pelos governantes, pelo caos econômico e pela ausência de ética. Não há, na guerra, nada que tenha valor real para ser compartilhado entre as pessoas, e a narrativa, fruto desse contato entre histórias pessoais, perdeu a sua riqueza.

Historicamente narradores anônimos intercambiavam, oralmente, experiências variadas e isso compunha as narrativas em dois ramos fundamentais: a dos que vinham de longe e a dos que, vivendo localmente, conheciam suas tradições. Essa interpenetração dessas duas famílias, facilitada pela sistema corporativo medieval, é que permite a compreensão real do reino narrativo:

Quem viaja tem muito que contar", diz o povo, e com isso imagina o narrador como alguém que vem de longe. Mas também escutamos com prazer o homem que ganhou honestamente sua vida sem sair do seu país e que conhece suas histórias e tradições. Se quisermos concretizar esses dois grupos através dos seus representantes arcaicos, podemos dizer que um é exemplificado pelo camponês sedentário, e outro pelo marinheiro comerciante. Na realidade, esses dois estilos de vida produziram de certo modo suas respectivas famílias de narradores. Cada uma delas conservou, no decorrer dos séculos, suas características próprias (...) Se os camponeses e os marujos foram os primeiros mestres da arte de narrar, foram os artífices que a aperfeiçoaram. No sistema corporativo associava-se o saber das terras distantes, trazidos para casa pelos migrantes, com o saber do passado, recolhido pelo trabalhador sedentário. (BENJAMIN, 1994: 198_199)

Ao analisar a trajetória de Leskov, romancista russo do século XIX, como alguém que havia viajado muito e utilizado suas experiências ao narrar os personagens como homens justos, que se preocupavam e aconselhavam, Benjamin observa que “o senso prático é uma das características de muitos narradores natos” onde a natureza da verdadeira narrativa teria uma dimensão utilitária, com o narrador sabendo transmitir algum ensinamento moral:

Mas, se "dar conselhos" parece hoje algo de antiquado, é porque as experiências estão deixando de ser comunicáveis. Em conseqüência, não podemos dar conselhos nem a nós mesmos nem aos outros. Aconselhar é menos responder a uma pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo narrada. Para obter essa sugestão, é necessário primeiro saber narrar a história (sem contar que um homem só é receptivo a um conselho na medida em que verbaliza a sua situação). O conselho tecido na substância viva da existência tem um nome: sabedoria. A arte de narrar está definhando porque a sabedoria - o lado épico da verdade - está em extinção (BENJAMIN, 1994: 200)


O Romance surgido nos primórdios da humanidade, encontrou na ascensão burguesa, e na criação da prensa, campo fértil para se desenvolver. O romance, para Benjamin, não procedeu nem alimentou a narrativa, dela se distinguindo e chegando a torná-la arcaica:

O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes. O romancista segrega-se. A origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los. Escrever um romance significa, na descrição de uma vida humana, levar o incomensurável a seus últimos limites. (BENJAMIN, 1994: 201)


Na consolidação da burguesia, entretanto, o próprio romance deu sinais de desgaste e entrou em crise quando uma forma de comunicação, que sempre existiu, mas nunca ganhou tamanho destaque, cresceu de forma imensurável: a informação.

Mas a informação aspira a uma verificação imediata. Antes de mais nada, ela precisa ser compreensível "em si e para si". Muitas vezes não é mais exata que os relatos antigos. Porém, enquanto esses relatos recorriam freqüentemente ao miraculoso, é indispensável que a informação seja plausível. Nisso ela é incompatível com o espírito da narrativa. Se a arte da narrativa é hoje rara, a difusão da informação é decisivamente responsável por esse declínio.
Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações. Em outras palavras: quase nada do que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação. Metade da arte narrativa está em evitar explicações
(BENJAMIN, 1994: 202)

A narrativa não precisa da novidade, é entendida a qualquer tempo e sem quaisquer explicações extras, todavia a informação não pode prescindir do novo. Seu tempo é outro. A narrativa pode esperar décadas, séculos, e achar solo fértil para florescer, por isso Benjamin a compara às sementes de trigo encontradas nas câmaras das pirâmides, que os milhares de anos de estocagem não tiraram o potencial de germinação.
A narrativa também se liberta das nuances psicológicas, onde o ouvinte a assimila ao somá-la às suas próprias experiências e logo acabará por recontá-la.
A narrativa pede, também, um outro estado do espírito do ouvinte, o lento tecer, fiar, um relaxamento, uma distensão, como diz Benjamin, para ser mais profundamente assimilada (e um momento de ócio como diria Bertrand Russell), ela é uma forma artesanal de comunicação.

Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido. Quando o ritmo do trabalho se apodera dele, ele escuta as histórias de tal maneira que adquire espontaneamente o dom de narrá-las. Assim se teceu a rede em que está guardado o dom narrativo. E assim essa rede se desfaz hoje por todos os lados, depois de ter sido tecida, há milênios, em torno das mais antigas formas de trabalho manual.
(BENJAMIN, 1994: 205)

A memória é essencial à narrativa, tanto para quem conta como para quem a ouve, e que a irá recontar. Nas palavras do autor: “Para o ouvinte imparcial, o importante é assegurar a possibilidade da reprodução. A memória é a mais épica de todas as faculdades. Somente uma memória abrangente permite à poesia épica apropriar-se do curso das coisas, por um lado, e resignar-se, por outro lado, com o desaparecimento dessas coisas, com o poder - da morte.” É a memória que tece a rede das histórias, que vão ser contadas por “artesãos”:

Assim definido, o narrador figura entre os mestres e os sábios. Ele sabe dar conselhos: não para alguns casos, como o provérbio, mas para muitos casos, como o sábio. Pois pode recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida que não inclui apenas a própria experiência, mas em grande parte a experiência alheia. O narrador assimila à sua substância mais íntima aquilo que sabe por ouvir dizer). Seu dom é poder contar sua vida; sua dignidade é contá-la inteira. O narrador é o homem que poderia deixar a luz tênue de sua narração consumir completamente a mecha de sua vida. Daí a atmosfera incomparável que circunda o narrador, em Leskov como em Hauff, em Poe como em Stenvenson. O narrador é a figura na qual o justo se encontra consigo mesmo (BENJAMIN, 1994: 221)


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